*Bety OrsiniAlguma mudança está acontecendo dentro de mim. Ando prestando atenção em coisas que jamais imaginei, descobrindo encantos insuspeitos em detalhes que, antes, me passavam despercebidos. Quando a gente fica mais velha, vai olhando o mundo com olhos grandões para não perder absolutamente nada dessa magia que é viver. Você já provou fruta de rua? Ou faz parte da legião dos que nem sequer pensaram nisso? Ou melhor, dos que não se deram conta de que alguns bairros de Niterói têm um variado pomar ao longo de suas calçadas e ao alcance de suas mãos. Mas nunca é tarde para descobrir esse mundo sensual, colorido e perfumado que, indiferente à fumaça negra e às paredes de concreto, nos espanta com um surpreendente viço em seus galhos e folhas. E com uma incrível capacidade de produzir frutos tão saborosos quanto os que compramos todos os dias, e que têm um sabor parecido com aquele beijo que queremos que nunca termine.
Podem acreditar: frutas do asfalto não têm gosto nem de cimento, nem de betume. Isso sem falar que têm uma inigualável vantagem: lembram os tempos de infância, a época em que os quintais e jardins decoravam a paisagem urbana, quando nós, num gesto ingênuo e moleque, podíamos apanhar, sem medo de represálias, um sapoti, uma goiaba ou uma laranja, dependurados em galhos que fugiam para as ruas. Até
mesmo pular um muro ou esticar os braços para furtar uma pitanga, uma jabuticaba e uma romã, para curar a rouquidão, eram atos toleráveis. Tudo isso fazia parte da lista das molecagens aceitáveis. A fartura e o olhar benevolente da vizinhança favoreciam essas práticas.
Sou, confesso, iniciante em matéria de consumo de frutas de rua. Mas já desvendei um segredo normalmente só conhecido pelos mais experientes: o bom mesmo, a sensação mais agradável, é andar em ziguezague pelas calçadas, assim meio tontinha, e distinguir, em meio às árvores, as que dão frutos, sem cair na tentação de comê-los. Ah, como é bom desviar a atenção de vitrines, resistir à compulsão pelo consumismo das roupas grifadas, olhar para cima e dar de cara com abacates e amoras, balançando como se acenassem para nossa gula. Ou exibindo-se num bailado que, no fundo, não passa de um esforço de perpetuação da espécie. Algo como: por favor, devorem-me para que nossas sementes sejam espalhadas. Um amigo que entende de natureza já me falou sobre esse mágico comportamento das plantas. Acreditei, piamente.
E logo me identifiquei com as frutas. Não que eu ande balançando por aí de galho em galho. Nem pensar! Mas por conta desse desejo que nós, mulheres, temos de preencher o coração com amor. Acho que, como as frutas, quando esse desejo fica muito intenso, ficamos lindas, cheirosíssimas e, admito, um pouco oferecidas. Mas, por favor, não duvidem, sou agora uma andarilha zen: desenvolvi um modo de caminhar num doce balanço, com ar indolente, sem pressa nem rumo, deixando que o instinto me leve a um mamoeiro em flor, uma laranjeira, um pé de maracujá, crescendo a meio metro do asfalto. Mais do que nunca, uno o útil ao agradável, sem, necessariamente, manter os olhos voltados apenas para o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor.
Afasto-me um pouco desses monumentos grandiosos, como tenho me afastado do amor-paixão, e começo a prestar atenção aos detalhes, às sutilezas do coração e da aisagem. Por isso sinto até culpa se piso, por descuido, num jamelão ou num tamarindo, como aconteceu quando, sábado passado, estiquei meu passeio até a Avenida Ary Parreiras. Na verdade, a descoberta desse tesouro plantado à beira dos paralelepípedos foi por acaso. Ou melhor, deveu-se a uma inusitada experiência que poderia ter resultado em um acidente, mas que, para minha sorte, acabou em um saboroso suco. No final de dezembro, na esquina das ruas Miguel Couto e Santa Rosa, quando ia para a academia onde faço natação, percebi que alguma coisa tinha caído como um raio a dois palmos dos meus pés. A sensação de que escapara da morte me desencorajou a baixar os olhos. Mas deu para imaginar: seria um parafuso de avião, o martelo de algum prédio em construção, a cauda de um cometa? O homem que assistiu à cena sugeriu: “Faça dela uma salada”. A ironia me tirou do estado de torpor. Olhei para o chão e vi uma enorme manga, esmagada, mas irresistivelmente apetitosa, se oferecendo para mim sem nenhum pudor. Fui rápida: recolhi a fruta e respondi ao engraçadinho na mesma moeda: “Prefiro um suco”. Dito e feito: em casa, preparei a melhor “mangada” que bebi em toda a minha vida. Com direito a um brinde ao anônimo e bondoso anjo da guarda que protegeu minha cabeça. Acabo de incluir, em meu roteiro de Icaraí, pés de café
cultivados na esquina da Otávio Kelly com Herotides de Oliveira, e dois pés de cacau na mesma Herotides, número 17. Se não chover, amanhã visitarei uma jovem jaqueira na Otávio Carneiro. E terei o prazer de ser apresentada a um abacateiro que estende galhos, cheios de frutos, sobre a calçada da Miguel Couto. Detalhe imperdoável: sou vizinha dele há anos e desconhecia sua existência. Assim como desconheço a existência do meu próximo amor, que, como manga madura, estou aguardando que qualquer dia desses surpreenda o meu coração.
*Bety Orsini é jornalista e autora de Nas ondas do rádio – histórias sentimentais de homens e mulheres do Brasil (Record)
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