quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Flexibilidade, consumo e imagem



Júlio Nessin*



O que acontece com o caráter do profissional, no seu processo de formação, dentro de uma sociedade baseada no capitalismo flexível? Essa “flexibilização” muda o significado do trabalho?
A carreira profissional é o instrumento concreto da vida econômica do trabalhador e este é descaracterizado devido à flexibilização do trabalho que se configura num sistema de poder constituído de três elementos básicos: a reinvenção descontínua de instituições, especialização flexível de produção e concentração de poder descentralizado: Reinvenção descontínua das instituições: as instituições transformam o presente descontínuo com o passado. A prática administrativa passa a ser em rede e não mais piramidal. Surgem reinvenções, reengenharia em busca da maior produtividade e, conseqüentemente, a redução de empregos; Especialização flexível: tenta por no mercado, cada vez mais rápido, produtos mais variados. Substitui a linha de montagem por ilhas de produção - mudanças nas tarefas semanais a até diárias dos funcionários e a Concentração sem centralização: implica numa falsa impressão de que esta nova forma de organização do trabalho descentraliza o poder no momento em que dá um relativo controle sobre suas atividades. Neste caso, a liberdade encontra-se, apenas, na escolha de como realizar o que é exigido pelo sistema.
Este sistema exige dos profissionais a capacidade de serem ágeis e principalmente, abertos a mudanças rápidas e em curto prazo. Esta descaracterização também acaba atingindo o seu caráter:
"O termo caráter concentra-se sobretudo no aspecto a longo prazo de nossa experiência emocional. É expresso pela lealdade e compromisso mútuo, pela busca de metas a longo prazo, ou pela prática de adiar a satisfação em troca de um fim futuro. Da confusão de sentimentos em que todos estamos em algum momento em particular, procuramos salvar e manter alguns; esses sentimentos sustentáveis servirão a nossos caracteres. Caráter são os traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem. Como decidimos o que tem valor duradouro em nós numa sociedade impaciente, que se concentra no momento imediato? Como se podem buscar metas de longo prazo numa economia dedicada ao longo prazo? Como se podem manter lealdade e compromissos mútuos em instituições que vivem se desfazendo ou sendo continuamente reprojetadas? Estas são as questões sobre o caráter impostas pelo novo capitalismo flexível." (Sennett, 1999: 10-11).
Antes da implantação do sistema capitalista flexível, o trabalho era para a vida toda, a exemplo dos contínuos do Bando do Brasil que chegavam a gerentes, isto é: havia segurança no emprego. Deste modo, os trabalhadores poderiam prever como seriam suas vidas. Com a flexibilização, o objetivo do trabalhador passou a ser estar aberto às mudanças e correr riscos. Estas mudanças, na vida dos indivíduos, trazem consigo insegurança e o medo constante da perda não só do emprego, mas do controle de suas vidas, com isso perde-se o senso de comunidade, fazendo com que cada trabalhador cuide apenas de si, transformando colegas em adversários.
O relacionamento familiar passa a ser prejudicado, já que o trabalho não pode ser usado como exemplo de conduta ética porque o lema "Não há longo prazo" implica em não haver mais estabilidade no emprego que, conseqüentemente, não pode mais ser utilizado como o conjunto de qualificações durante toda a vida de trabalho. A principal causa disso é que agora o mercado é motivado pelo consumidor (que busca a mudança) e as pessoas não mais se associam a "longo prazo", o que enfraquece os laços:
"É a dimensão do tempo do novo capitalismo, e não a transmissão de dados high-tech, os mercados de ações globais ou o livre comércio, que mais diretamente afeta a vida emocional das pessoas fora do local de trabalho. Transposto para a área familiar, 'Não há longo prazo' significa mudar, não se comprometer e não se sacrificar (...)." (SENNETT, 1999 p. 25).
A "flexibilidade" implica em ser adaptável a forças variáveis, sem ser quebrado por elas, tornando-se uma forma de resolver o problema da rotina. Segundo Harvey (1989, p. 140), a flexibilidade “também envolve um novo movimento que é a compressão do espaço-tempo no mundo capitalista”.
Em meio a esse contexto, surge a exigência do indivíduo ser capaz de dobrar-se à mudança, capaz de não se apegar ao que constrói, trazendo à tona mais um traço da flexibilidade do caráter: a tolerância à fragmentação. O desprendimento do passado e a aceitação da fragmentação tornam-se traços essenciais do caráter que é formado dentro deste mundo flexível, que cria novas estruturas de poder e controle.
Outra mudança no caráter, trazida pela flexibilidade, é a avaliação ilegível da classe social e do trabalho realizado por parte dos trabalhadores. Em fim, o compromisso com o trabalho torna-se superficial porque não se entende o que se faz. É daí que decorre a necessidade de estar apto a correr riscos, a estar sempre mudando, já que não se tem uma ligação pessoal com o trabalho realizado. Conseqüentemente, não se deve ter medo de correr riscos, pois correr riscos é uma exigência da flexibilização.
Torna-se necessário ter coragem para enfrentar os riscos e sempre começar do zero; provar, todos os dias, que se é capaz, como se diz popularmente: “matar um leão por dia”. Mas correr riscos gera uma incerteza que produz uma desorientação que se apresenta de três formas: 1) mudanças laterais ambíguas: mudanças para o lado, e não para cima (a hierarquia piramidal é substituída por redes); 2) perda retrospectiva: só se sabe a perda depois de realizada a ação; e 3) resultados salariais imprevisíveis: perdas de ganhos salariais. No entanto, no mundo flexível, deve-se correr risco mesmo sabendo que se pode fracassar.
Surge assim, o “homem irônico”, que não se leva a sério por estar sempre sujeito à mudança. O fracasso passa a ser uma perspectiva de vida, e é assumido pelos trabalhadores como uma responsabilidade pessoal, que passa por três fases distintas: traição da empresa, busca de forças externas para culpar e responsabilidade a respeito do que poderia ser feito para evitar a situação.
Apesar de todas essas condições emocionais geradas pela nova forma de organização do trabalho, ou seja: incertezas da flexibilidade, ausência de confiança, superficialidade das relações, etc., o capitalismo moderno trouxe uma conseqüência inesperada: o anseio de comunidade, a busca pelo "Nós", como forma de auto-proteção, de auto-defesa contra a instabilidade e insegurança causadas pela flexibilização. Mas, ao mesmo tempo, a constatação de que se necessita do outro, traz com ela o problema da desconfiança. É a vergonha da dependência que corrói a confiança e o compromisso mútuos apresentando-se, esta questão.
Pode-se concluir, portanto, que a formação do caráter dos indivíduos não está relacionada apenas ás questões psicológicas, mas que também é fortemente influenciada pelo social; e que se trata de descobrirmos como manter o senso de comunidade dentro de uma sociedade. Nesse sentido Sennett afirma: “sei que um regime que não oferece aos seres humanos motivos para ligarem uns para os outros não pode preservar sua legitimidade por muito tempo” (SENNETT, 2001 p. 176)


Referências Bibliográficas:
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2000.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2001.


*Júlio Nessin: Licenciado em Educação Artística com Habilitação em Desenho, Especialista em Gestão Ambiental e Poeta.
http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=31253

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